sábado, 19 de agosto de 2017

Sem “presidentarismo”: o fim do vice

Avançou na Câmara dos Deputados a discussão sobre a PEC 77/03, cujo texto substitutivo pretendia alterar o art. 80 da Constituição Federal para eliminar o cargo de Vice-Presidente do quadro institucional brasileiro e, em hipótese de impedimento do Presidente da República, ou de vacância deste cargo, serem sucessivamente chamados a exercê-lo os Presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal.
A mudança se justificaria pelo fato de que o cargo de Vice-Presidente não seria bem compreendido pela população brasileira, imporia despesas desnecessárias, e poderia ser substituído pelos atores já indicados na linha sucessória constitucional.  No entanto, a proposta parecia encontrar resistência no postulado da separação de poderes, especialmente rígido nos sistemas presidencialistas.
Como se sabe, o presidencialismo brasileiro foi cunhado sob forte inspiração do modelo norte-americano, pioneiro neste sistema, onde o descontentamento com medidas do parlamento inglês tidas como arbitrárias pelos colonos inspirou um quadro de rígida separação dos poderes, a fim de esvaziar a hegemonia do Legislativo que vigorava na Europa. Somente assim o governo restaria limitado e a liberdade, assegurada.
Sob o regime parlamentarista ou sob o presidencialista, a separação de poderes, fruto de séculos de desenvolvimento do constitucionalismo, pretende evitar a concentração de poder num único órgão ou pessoa e, desta maneira, o seu uso desmedido ou arbitrário por parte daquele que o detém. A diferença fundamental entre os dois regimes consiste em que, no primeiro caso, o chefe de governo é membro do parlamento; no segundo, não.
Disso decorre uma importante constatação: no modelo parlamentarista, o governo é atribuição do Legislativo e a este o Primeiro-Ministro deve maior deferência que o Presidente no respectivo sistema, em que a direção política é atributo do Executivo.  Em suma síntese, a separação de poderes opera em grau inversamente proporcional ao de vinculação do chefe de governo com o parlamento e tem implicações sobre a condução do Estado.
Embora a função substitutiva figure no quadro de competências dos ocupantes das Presidências do Legislativo e do Judiciário, a evidente intenção constitucional é de conferir-lhe contornos de excepcionalidade.  Tanto assim que a opção da Carta, quando do impedimento do Presidente da República, é a de manter o exercício da chefia do Poder Executivo a quem houver sido eleito para tanto, isto é, ao Vice-Presidente.
A transferência do chefe de um Poder a outro é deferida pela Constituição em caráter residual, apenas para evitar a instabilidade institucional decorrente da acefalia do cargo, pois consiste em induvidoso exercício de função diversa daquela para a qual fora precipuamente eleito.  Assim, não é compatível com o princípio democrático, senão por excepcional eventualidade, que uma pessoa exerça função para a qual não foi eleita.
No desenho sugerido pela PEC 77/03, a eventualidade da competência substitutiva dos Presidentes das casas legislativas e do Poder Judiciário cederia lugar a um modelo em que os chefes daquelas ocupam, a um só tempo, os Poderes Legislativo e Executivo de forma permanente e ordinária. Isso porque a potencial substituição imediata do Presidente é tarefa contínua de membro do Executivo, qualquer que seja a denominação que se lhe atribua ao cargo.
Sob esse prisma, a resistência à proposta não se deve a um apego formal à separação dos poderes, que restaria inalterada em seu núcleo essencial mesmo se aprovada nos termos em que apresentada, mas sim a argumentos de ordem pragmática. Experiências recentes da política brasileira – o impeachment de Dilma Roussef e a rejeição da denúncia contra Michel Temer – revelam a importância de um Presidente da Câmara alinhado ao da República.
É atribuição do Presidente da Câmara dos Deputados dar prosseguimento ou não ao pedido de abertura de processo criminal por crime de responsabilidade contra o Presidente da República. Aprovada, a alteração macularia de pronto o mínimo rastro de isenção do chefe desta casa legislativa, ante a possibilidade de vir a ocupar o cargo de mandatário maior da nação, sobretudo num eventual cenário de instabilidade política e econômica que favorecesse a procedência do pedido.
Nisto não se ignora que, dada a feição política do processo de impeachment, a imparcialidade dos atores envolvidos no julgamento afigura-se em plano secundário. Desse modo, além de se tornar elemento de barganha para medir forças com o chefe do Executivo, como já ocorreu, o pedido de abertura do processo poderia servir de trampolim para pretensões pessoais do Presidente da Câmara dos Deputados ou do grupo político a este ligado.
Também o processo legislativo, meio fundamental e necessário para o tratamento de temas de interesse nacional, poderia ser embaralhado com a eventual submissão de um projeto de lei a sanção ou veto de um membro do Legislativo. Para sancioná-lo ou vetá-lo, o Presidente da Câmara poderia marcar posição pessoal, aprovando ou rejeitando proposições que se distanciassem do projeto de governo eleito com o Presidente substituído, embora na segunda hipótese o veto pudesse ser derrubado.
A proposta sepultada, enfim, conduziria a política a um estágio de anomalia institucionalizada. O Presidente da República conviveria com um Vice que não o seria, mal adaptado ou mal inspirado no parlamentarismo; o princípio democrático restaria ignorado; a separação de poderes se converteria de postulado fundamental a promessa insincera da Constituição; e o país passaria a enfrentar um cenário de instabilidade política, estimulado o impeachment e subvertido o processo legislativo. Melhor não.

por: Gabriel Cintra - Advogado e Mylena Devezas Souza - Advogada trabalhista; mestranda em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense.
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